segunda-feira, 14 de julho de 2014

Para começar essa conversa...


Hoje, enquanto pensava em construir esse espaço para partilha de informações, inquietações e atravessamentos sobre a Dança, me deparei com um artigo de uma das pesquisadoras que mais admiro: Christine Greiner. Nele, Christine aponta caminhos percorridos pela  dança contemporânea, transformações percebidas relativas à sua própria natureza, conceitos e práticas que a fazem ser denominada como tal.
Arena de infinitas possibilidades, a dança contemporânea se constrói na diferença, ou na consciência da diferença entre os corpos: entre os diferentes movimentos criados por esses diferentes corpos, pelos diferentes modos de pensar/fazer dança. Democrática, a dança contemporânea não estabelece um modelo de corpo a ser seguido, nem passos a serem reproduzidos, ou regras a serem obedecidas...
Para começar essa conversa (ou essa dança) reproduzo aqui o texto citado.


Christine Greiner - Foto Edouard Fraipont.
Disponível em:<http://idanca.net/inquietacoes-no-rumos-danca-2010/>


O corpo e suas paisagens de risco: dança/performance no Brasil.
Christine Greiner
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Departamento de Linguagens do Corpo,
greinerchristine@hotmail.com

Uma mulher emaranhada em uma instalação de arames mal consegue se mover. Dançarinos reinventam as suas formas criando anagramas corpóreos. Uma queda brusca no chão é repetida incansavelmente até desestabilizar os sentidos da ação. Um sujeito mergulha em sangue de mentira. Dilui-se em lágrimas e saliva.
Estas são algumas das cenas que têm sido apresentadas, sobretudo nos últimos dez anos, em palcos, galerias de arte e saguões de centros culturais de diversas cidades brasileiras assombradas por uma indagação pouco original: afinal, isto é dança?
Para entender o sentido desta pergunta é importante compreender um pouco do contexto evolutivo da dança no Brasil e as consequências da mudança na escolha de critérios que insistem em estabelecer limites entre gêneros artísticos usando, muitas vezes, argumentos que giram em torno de regras de discurso e, por isso mesmo, têm se desgastado pedindo por uma reflexão voltada para aspectos mais coerentes com as questões propostas pelos próprios artistas.
Não é fácil “ler” um corpo que dança. Nunca foi. Susan Leigh Foster (1996: XVI) sugere que, nos últimos anos, o que mudou é que se tornou possível pensar a coreografia também como teoria, abrindo um espaço onde a dança e toda tentativa de centrar a discussão no corpo passam a ter uma integridade e importância equivalentes àquelas da documentação escrita, que sempre foi mais valorizada, sobretudo no Ocidente. Assim, a paridade entre dança e texto escrito tem funcionado como um convite a novas abordagens para o ato de traduzir dança em uma descrição verbal. As novas tentativas de tradução tornaram necessário o reconhecimento da distinção de cada mídia e a observação do modo como os corpos que dançam (re) constroem paisagens do risco e vagueiam por outras instâncias narrativas, nem sempre perceptíveis, mas nem por isso menos importantes.
Não se trata, evidentemente, de voltar à inefabilidade ou intangibilidade da dança, mas do reconhecimento de que antigos vocabulários usados para defini-la e analisá-la não são mais eficientes para discutir o que está em cena. As dificuldades daí decorrentes norteiam o debate de que aquilo que não cabe no antigo discurso simplesmente não é dança.
Não há dúvida de que mudaram as referências. Não se trata mais de comparar o que acontece na cena com um modelo dado anteriormente, mas de analisar e identificar as trocas singulares que são testadas durante o processo de criação coreográfica, entre os dançarinos e o ambiente onde se expõem. A própria noção de ambiente tornou-se mais complexa envolvendo não apenas o local onde algo acontece, mas todo contexto informacional referente ao ambiente cultural, político, biológico, psicológico e assim por diante. Esta complexidade parece ser o ponto de partida para as experiências do que se tem chamado de dramaturgia do corpo. Isso porque, nos últimos dez anos, tem sido habitual não existir mais uma coreografia da maneira como esta era entendida no passado (uma composição de passos de dança); e mesmo o entendimento do que seja uma “técnica” também já não é mais o mesmo (um conjunto de vocabulários, dados passíveis de repetição e criação de hábitos).
Tais mudanças de natureza epistemológica têm questionado a própria natureza da dança e por isso não raramente são identificadas como o avesso de outras experiências já reconhecidas, causando estranhamento. Para definir estes novos modos de organização não é suficiente (nem desejável) emaranhar-se na teia das novas ou antigas nomeações a não ser quando, ao invés de mistificar ou criar regras estritas de codificação, estas possam ajudar a iluminar passagens pouco conhecidas alimentando o caráter processual do corpo, reconhecendo-o como uma rede complexa e entrópica de informações capazes de aliar múltiplas imagens e conceitos ao mesmo tempo, ou seja: isso ocorre quando a própria coreografia constrói conexões teóricas e não quando se submete a elas. Este entendimento de coreografia não se restringe a uma coleção de passos já organizados previamente, mas a uma organização neuromuscular que dá visibilidade a um pensamento.

A dança no Brasil
No Brasil dos últimos dez anos, assim como aconteceu em outros países do mundo, decidir se uma manifestação é dança ou não tornou-se um dilema placebo. Só serve para curar uma patologia cíclica: a obsessão pelas categorizações que transformam o pensamento artístico em um subproduto do observador.
A instância do não nomeado é sempre marcada pela impermanência. É da sua natureza trafegar por entre-lugares, sobretudo no sentido metafórico, quando emergem conexões que, evidentemente, estão no corpo, mas se organizam em trânsito com o entorno e o imaginado. Não se trata, portanto, apenas do local do acontecimento. A instância daquilo que ainda não foi nomeado é impermanente porque está em processo de organização e desorganização, evitando restringir-se exclusivamente à instância do hábito, do padrão e do comportamento. É da natureza das experiências que marcam a história da dança, desde os anos 1960 e 1970, desafiar os padrões mentais e motores.
Há alguns anos, o coreógrafo William Forsythe (apud Brandstetter, 2000:16) tem afirmado que na dança o corpo apresenta-se principalmente na sua forma temporal. Este seu aspecto de temporalidade está relacionado, principalmente, à percepção do corpo. O que se identifica como uma ocorrência ou a energia performativa do corpo que se move, no momento em que se move, é aquilo que foge das tentativas de tradução e nomeação porque trafega entre o que tem alguma estabilidade (a memória e os hábitos do corpo) e as perdas concomitantes que caracterizam o estar vivo (o esquecimento, a entropia, o envelhecimento).
Neste sentido, a dança sempre trabalhou com um tipo de permanência que não é fixa porque se organiza em níveis diferentes. Esta não é uma invenção da dança contemporânea, trata-se da própria natureza do corpo. Muitas vezes, a dança é aparentemente estática num nível macroscópico, mas intensamente trabalhada através de movimentos microscópicos, criando uma espécie de impermanência invisível que resiste e transforma os estados corporais em potência.
As paisagens do risco estão presentes nestas experiências em diferentes sentidos. Correspondem a uma crise de categorias e ao reconhecimento de que o que leva um sistema a mudar é precisamente o que ele exclui. Daí a frase: isso não é dança. É sempre mais conveniente eliminar aquilo que não cabe nos modelos dados do que repensar o que se considerava como uma matriz de pensamento.
Não há verdade definitiva sobre o que acontece nem no objeto em si, na sua imediaticidade, nem na reflexão sobre o objeto. Não existe ação corporal sem crise, conflito, tensão, incompletude, trânsito com o ambiente e perda. Algumas danças, identificadas como antidanças, nada mais fazem do que questionar convenções, molduras e modos de agir, carregando as suas manifestações para extremos, nem que seja apenas por divertimento, uma vez que não apenas a dor, mas o humor também pode ser transformador através de um riso que desestabiliza a cena, transformando-se em um jogo de vertigem, por exemplo.
As aproximações com o que se chama de performance são, nestes casos, inevitáveis. De 1970 até hoje, muitas pesquisas e especulações discutiram a performance como campo dos impasses, quando uma linguagem navega através de outra e as referências se embaralham. A etimologia da palavra performance, do francês “parfournir”, já foi usada em diferentes sentidos como prover, completar, deslocar e está relacionada à construção de alguma coisa que não é essência, nem verdade, mas o traço de conexões que podem emergir como potência de vida e de ação. Trata-se de algo que aconteceu uma primeira vez e que, na forma de performance, acontece sempre, pelo menos pela segunda vez como uma repetição que restaura uma situação que já passou, mas precisa ser reapresentada para radicalizar, distender, transformar ou dar visibilidade ao que não foi destacado na primeira vez.
Aqui, é preciso observar que a noção de “restauração” não significa reconstituir ou preservar. É mais no sentido de re-instaurar para que a experiência não desapareça sem reflexão, sem deixar marcada a evidência do acontecimento, mesmo que de uma maneira fragmentada, mas de modo a preservar a sua mobilidade e marcando a diferença. O que se tem questionado no campo da dança é se, desta forma, a experiência pode constituir novos gestos do pensamento ou ações políticas desestabilizadoras.
O gesto, diz Giorgio Agamben (2000), é justamente a exibição destas mediações, ou seja, dos processos de tornar um sentido visível como tal. O gesto permite a emergência do corpo como mídia porque é a comunicação de uma comunicabilidade. Não é um significado pronto, ao contrário do que se diz em tantas publicações, mas trata-se de algo que está se constituindo. Muitas vezes, o gesto é em si mesmo uma perda de memória, o que supostamente alguém poderia entender como um “defeito” do discurso, mas é justamente aí, nestes entre-lugares que o corpo se faz presente, constrói política e cria conhecimento. Há uma diferença, explica Agamben, entre o esquecimento que anestesia e aquele que reorganiza e desconstrói para construir.
A política na esfera do sentido sempre diz respeito à gestualidade, à comunicação de uma comunicabilidade em um ambiente. De fato, foi exatamente isso que aconteceu no Brasil, sobretudo a partir de 1970, período em que o país vivia sob regime militar e forte censura. Formular pensamentos em gestos de dança foi, na ocasião, uma estratégia velada, menos explícita aos censores do que os textos escritos. Além disso, não se tratava, necessariamente, de uma atuação para o outro, mas sim para o próprio sujeito em situação de alteridade. Isso porque, quando este se repensa, desconfia de si mesmo, das suas próprias verdades. Parece que foi do gesto assim descrito, como sugere Agamben, que se alimentaram as primeiras experiências brasileiras das anti-danças ou danças-performances. Nunca foi da natureza da dança apresentar movimentos significativos, com um léxico claro, traduzível. No entanto, a noção de passo de dança, muitas vezes com nomeações próprias, forjou durante quatro séculos interpretações de metáforas corporais que ganharam ares de universalidade. Não sem motivos, o bale clássico foi considerado por tantos artistas e pesquisadores uma espécie de “língua universal”. A interpretação das chamadas metáforas ontológicas que reincidem de maneira semelhante em diferentes culturas (Lakoff e Johnson 1988, 1999) criou a falsa impressão da possibilidade de tradução da dança em um discurso verbal supostamente esclarecedor, como se a dança fosse uma ilustração ou a legenda de algo que não nasce como movimento, mas sim como o seu significado.
O que têm mostrado os estudos do corpo nos últimos trinta anos é exatamente o oposto disso. O conhecimento nasce do movimento e é situado, singular. Migra de oscilação neuronal para acionamento motor e vice-versa. É para compreender essas migrações dentro e fora do corpo que se torna fundamental reconhecer diferentes níveis de complexidade que conectam imagens, pensamentos e linguagem, constituindo os procedimentos da chamada dança contemporânea.

As mudanças epistemológicas do corpo no Brasil
No Brasil, de uma maneira geral, até 1970, falar em dramaturgia significava criar e discutir exclusivamente textos teatrais, um tema que parecia não ter nada a ver com a dança, uma vez que até então as experiências de dança no país voltavam-se, sobretudo, para o balé e a dança moderna. Em uma época de silêncio, censura e morte (o regime militar no Brasil vai de 1964 a 1985) é que o movimento começa a se afirmar como fundamento da comunicação.
É possível observar três mudanças marcantes para o início da pesquisa e criação de uma dramaturgia da dança que se identificará, duas décadas depois, com o que se considera hoje como dança contemporânea no país.
Nos anos 1970, destacam-se duas questões. A primeira está relacionada à valorização do aspecto comunicativo do gesto e à tentativa de personalizá-lo. Um exemplo marcante foi o do Ballet Stagium. A companhia, criada por Marika Gidali e Décio Otero em 1971, foi fundamental nesse período. Apesar de usar fundamentalmente o balé moderno em suas coreografias, absorveu movimentos e imagens da cultura brasileira em sua obra como o universo temporal dos índios em Quarup (1977) ou uma estética estilizada do samba em Coisas do Brasil (1979), levando os espetáculos para turnês que atravessaram o país literalmente de norte a sul e que foram responsáveis em grande medida pela criação de um público para a dança.
A segunda questão aparece relacionada às mudanças de entendimento do corpo a partir dos cruzamentos entre os seus diferentes níveis de descrição e experimentação que reconheciam, por exemplo:
1. Um “dentro” do corpo que era singular, mas não essencial, uma vez que tinha plasticidade, estava sempre em transformação.
2. Um movimento anterior aos passos de dança visivelmente reconhecíveis, que equivaleria ao que Hubert Godard reconhece como um pré-movimento – ação que se desenha internamente antes de se tornar visível e reconhecível como um gesto.
3. E níveis distintos de consciência corporal.

Alguns dos criadores que mais colaboraram com esta discussão do corpo pensante e da percepção como ignição para o conhecimento foram Klauss Vianna, Angel Vianna e Takao Kusuno, este último, especialmente a partir do trabalho que desenvolveu com Denilto Gomes.
Na passagem de 1980 para a década de 1990, destaca-se a articulação político-filosófica proposta por criadores independentes que não faziam parte de companhias oficiais e pleiteavam novos espaços de invenção e procedimentos de criação. A organização do Movimento Teatro Dança e da Cooperativa de Bailarinos Coreógrafos são exemplares. Se a dança que deixa traços de uma ação política em seu ambiente é performance, então já fazíamos isso há mais de trinta anos, mesmo sem apostar em uma distinção de gêneros artísticos.
É importante mencionar que é também nos anos 1990 que amadurecem as alianças entre teoria e prática através de investigações realizadas por artistas e pesquisadores teóricos através da construção de um pensamento crítico que passa a atravessar outros campos de conhecimento para pensar e fazer dança. Proliferam grupos de estudo, faculdades, festivais profissionais e despontam as primeiras publicações de autores brasileiros, resultantes da realização de dissertações de mestrado e teses de doutorado.
Na passagem do milênio, estas iniciativas deflagram a implementação de novos eventos como o circuito de festivais que promovem o intercâmbio entre artistas brasileiros e estrangeiros através de quatro capitais brasileiras, duas no nordeste (Recife e Fortaleza) e duas no sudeste (Rio de Janeiro e Belo Horizonte).
Tais experiências mostram que os novos nexos de sentido que caracterizam a construção das novas dramaturgias da dança não acontecem exclusivamente no corpo, mas na conexão com ambientes específicos. O Brasil são muitos Brasis. A dança brasileira são muitas danças. Alguns dos mais importantes nexos de sentido podem ser reconhecidos na cena, no momento em que ela acontece, e nos traços de performatividade que são evidenciados de maneira cada vez mais incisiva, de modo a transformar os contextos por onde trafegam. Eles podem ser identificados, por exemplo, na formação de um público mais disponibilizado a experiências inovadoras, nas disseminações dos pensamentos de dança, na formação de coletivos e na construção de uma memória cultural, até então bastante precária e fragmentada.
Se o francês, especialista em Brecht, Bernard Dort está correto ao afirmar que “a dramaturgia é uma consciência e uma prática”, ela não é algo exterior ao processo, mas está no continuum corpo/cérebro/ambiente. A dança no Brasil tem apresentado suas paisagens do risco na medida em que explicita este processo, o que, evolutivamente, tem tornado a dança e a performance cada vez mais próximas.

Bibliografia
Agamben Giorgio Notes on Politics. Theory out of BoundsSeries, vol. 20. University of Minnesota Press, 2000.

Brandstetter Gabriele and Hortensia Völkers Re Membering the Body. Hatje Cantz Publishers. 2001.

Clark, A. Being There, putting Brain, Body and World together again MIT Press, 1997.

Dort Bernard Le spectateur en dialogue: Jeu du theatre. POL, 1995.

Foster, Susan Leigh Choreography & Narrative: Ballet’s Staging of Story and Desire. Indiana University Press, 1998.

Greiner Christine O Corpo, pistas para estudos indisciplinares. Annablume, 2005.

Jones, Amelia e Tracy Warr. The Artist’s Body. Londres: Phaidon.2000.

Lakoff George and Mark Johnson Metaphors we live by.University of Chicago Press, 1988.

Lakoff George and Mark Johnson Philosophy in the Flesh. Bradford Books, 1999.

Loupee, Laurence Poétique de la danse contemporaine. Contredanse, 1997.

Rouch, Jean et alii Corps Provisoire. Ed. Armand Colin, 1992.

Disponível em: Texto em pdf
Acesso em: 13/07/2014

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