"... é o espaço que é o reino da atividade real do bailarino, que lhe pertence porque ele próprio o cria. Não é o espaço tangível, limitado e limitador da realidade concreta, mas o espaço imaginário, irracional da dimensão dançada, esse espaço que parece apagar as fronteiras da corporeidade e pode transformar o gesto que irrompe numa imagem de um aparente infinito, perdendo-se numa completa identidade como raios luminosos, regatos, como a própria respiração". (Mary Wigman apud Gil, 2004, p.14)
GIL, José. Movimento Total - o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
Reproduzo aqui um trecho de "Carta à um jovem dançarino" de Mary Wigman, publicado em seu livro Le langage de la danse. Publicado em alemão em 1963; tradução francesa de 1986.
Carta a um jovem dançarino
Dar aulas e ensinar não são sinônimos: um bom treinador não é
necessariamente um bom pedagogo. A análise e o controle dos processos do
movimento fazem parte do ofício e são o alimento diário do dançarino.
Mas ensinar significa clarear o material pedagógico sobre todos os seus
aspectos, transmiti-lo tão bem sobre o plano funcional como sobre o plano de um
engajamento espiritual e de uma experiência afetiva.
A dança não é uma linguagem cotidiana, ainda que a sua matéria-prima seja
a mesma com a qual o homem se exprime na sua vida de todos os dias. A dança é,
como a poesia e a música, a concentração intensa de suas múltiplas oscilações
interiores que tenderão a se unir para se cristalizar, afim de que nasça e se
desenvolva, a forma. E isto que se situa “entre as linhas” é não menos
significativo que a forma do que é claramente expresso. Mesmo na pureza nua do
gesto abstrato, o fundo espiritual e mental se representa em uma vibrante
filigrana e lhe confere perfume e cor, neste jogo de sombra e de luz – clima
dentro do qual a criação coreográfica se desenvolve espacialmente e se torna
experiência artística. É um momento maravilhoso, quando o suor flui, inundando
os corpos, quando os rostos são ardentes, quando a realização física vai além
do que se havia acreditado possível e o esforço se transforma em alegria. Mas eu vi
também como um grupo de jovens seres se iluminam por dentro e irradiam uma
potência que não é mais física, mas o sinal de uma espiritualização que coloca
a criação da dança no nível do encantamento e da transfiguração.
“Um pé que sorri, uma mão que pode chorar...” Então, a dança não é
somente uma arte do tempo e do espaço, é também uma arte do momento
conscientemente vivido e concluído, seja no estúdio ou em cena. Separar o
programa de ensinamento em termos de: duração, movimento, espaço, estrutura não
tem valor, fora quando há um cuidado de organização; Caso falte uma dessas
qualidades elementares, tudo fica incompleto. Para você e seus alunos, abra os
seus sentidos a este momento de criação onde a origem da vida borbulha!
Nenhuma palavra contra a virtuosidade! Nós a exigimos de todo dançarino
de uma certa atuação. Mas o dançarino que não brilha que pelo esplendor da
técnica e que dá voltas em cena em um vazio mecânico não faz parte dos eleitos.
E aos que não se referem que a eles mesmos em um espelho narcisista e não sabem
mais que eles se movem sobre a superfície congelada da solidão, onde mais nada
respira – estes não mais, não receberam o fulgor divino. Eles são seus próprios
obstáculos.
Eis que nós atingimos o limite de toda eficácia pedagógica. Pois aí que a
natureza manda e não permite que lhe furtem seu segredo.
Na verdade, nós podemos muito quando se trata de formar, de fazer
progredir e desenvolver. Mas não está em nosso poder criar esse grande talento
tão ardentemente desejado. Nós não podemos nem determinar o grau nem a natureza
do talento. Pois se a natureza não semeou o levedo do talento artístico do
homem, nenhuma força, nenhum desejo, nenhuma vontade poderão acender essa tocha
que tornará o fogo generoso de potência criativa, no seio do qual a linguagem
da dança encontra sua expressão suprema na obra de arte e onde o dançarino
torna-se portador e mensageiro da arte da dança. O talento é uma graça. O
talento pedagógico da dança igualmente.
Nossa missão, todavia é de servir. Servir a dança, servir a obra, servir
ao homem e servir a vida.
Proteja bem o fogo da arte meu amigo! Mantenha alta a chama!
Mary Wigman.
Excerto de
« Carta a um jovem dançarino » em Mary Wigman , A
linguagem da dança, segunda edição, Saint-Quentin en Yvelines: Chiron, 1990;
primeira edição, Paris: Papiers, 1986. (tradução nossa)
Disponível em: http://mutualise.artishoc.com/cnd/media/5/acquisitions-techniques-danse-contemporaine.pdf
(1) Mary Wigman (1886-1973), alemã nascida em Hannover, foi bailarina, coreógrafa e professora de dança, considerada uma das principais representantes da corrente da Dança Moderna Expressionista. Começou estudando na Escola de Ritmica de Jacques Dalcroze em Hellerau. Discípula e colaboradora de Rudolf Laban, em 1920 fundou sua primeira escola, a Dresden Central School e, em 1949, inaugurou outra em Berlim Ocidental.
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