O
corpo e suas paisagens de risco: dança/performance no Brasil.
Christine Greiner
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
Departamento
de Linguagens do Corpo,
greinerchristine@hotmail.com
Uma
mulher emaranhada em uma instalação de arames mal consegue se mover. Dançarinos
reinventam as suas formas criando anagramas corpóreos. Uma queda brusca no chão
é repetida incansavelmente até desestabilizar os sentidos da ação. Um sujeito
mergulha em sangue de mentira. Dilui-se em lágrimas e saliva.
Estas são algumas das cenas que têm sido
apresentadas, sobretudo nos últimos dez anos, em palcos, galerias de arte e
saguões de centros culturais de diversas cidades brasileiras assombradas por
uma indagação pouco original: afinal, isto é dança?
Para entender o sentido desta pergunta é importante
compreender um pouco do contexto evolutivo da dança no Brasil e as
consequências da mudança na escolha de critérios que insistem em estabelecer
limites entre gêneros artísticos usando, muitas vezes, argumentos que giram em torno
de regras de discurso e, por isso mesmo, têm se desgastado pedindo por uma
reflexão voltada para aspectos mais coerentes com as questões propostas pelos
próprios artistas.
Não é fácil “ler” um corpo que dança. Nunca foi.
Susan Leigh Foster (1996: XVI) sugere que, nos últimos anos, o que mudou é que
se tornou possível pensar a coreografia também como teoria, abrindo um espaço
onde a dança e toda tentativa de centrar a discussão no corpo passam a ter uma
integridade e importância equivalentes àquelas da documentação escrita, que
sempre foi mais valorizada, sobretudo no Ocidente. Assim, a paridade entre
dança e texto escrito tem funcionado como um convite a novas abordagens para o
ato de traduzir dança em uma descrição verbal. As novas tentativas de tradução
tornaram necessário o reconhecimento da distinção de cada mídia e a observação
do modo como os corpos que dançam (re) constroem paisagens do risco e vagueiam
por outras instâncias narrativas, nem sempre perceptíveis, mas nem por isso
menos importantes.
Não se trata, evidentemente, de voltar à
inefabilidade ou intangibilidade da dança, mas do reconhecimento de que antigos
vocabulários usados para defini-la e analisá-la não são mais eficientes para
discutir o que está em cena. As dificuldades daí decorrentes norteiam o debate
de que aquilo que não cabe no antigo discurso simplesmente não é dança.
Não há dúvida de que mudaram as referências. Não se
trata mais de comparar o que acontece na cena com um modelo dado anteriormente,
mas de analisar e identificar as trocas singulares que são testadas durante o
processo de criação coreográfica, entre os dançarinos e o ambiente onde se
expõem. A própria noção de ambiente tornou-se mais complexa envolvendo não
apenas o local onde algo acontece, mas todo contexto informacional referente ao
ambiente cultural, político, biológico, psicológico e assim por diante. Esta
complexidade parece ser o ponto de partida para as experiências do que se tem
chamado de dramaturgia do corpo. Isso porque, nos últimos dez anos, tem sido
habitual não existir mais uma coreografia da maneira como esta era entendida no
passado (uma composição de passos de dança); e mesmo o entendimento do que seja
uma “técnica” também já não é mais o mesmo (um conjunto de vocabulários, dados
passíveis de repetição e criação de hábitos).
Tais mudanças de natureza epistemológica têm
questionado a própria natureza da dança e por isso não raramente são
identificadas como o avesso de outras experiências já reconhecidas, causando
estranhamento. Para definir estes novos modos de organização não é suficiente
(nem desejável) emaranhar-se na teia das novas ou antigas nomeações a não ser
quando, ao invés de mistificar ou criar regras estritas de codificação, estas
possam ajudar a iluminar passagens pouco conhecidas alimentando o caráter
processual do corpo, reconhecendo-o como uma rede complexa e entrópica de
informações capazes de aliar múltiplas imagens e conceitos ao mesmo tempo, ou
seja: isso ocorre quando a própria coreografia constrói conexões teóricas e não
quando se submete a elas. Este entendimento de coreografia não se restringe a
uma coleção de passos já organizados previamente, mas a uma organização
neuromuscular que dá visibilidade a um pensamento.
A dança no Brasil
No
Brasil dos últimos dez anos, assim como aconteceu em outros países do mundo,
decidir se uma manifestação é dança ou não tornou-se um dilema placebo. Só
serve para curar uma patologia cíclica: a obsessão pelas categorizações que
transformam o pensamento artístico em um subproduto do observador.
A instância do não nomeado é sempre marcada pela
impermanência. É da sua natureza trafegar por entre-lugares, sobretudo no
sentido metafórico, quando emergem conexões que, evidentemente, estão no corpo,
mas se organizam em trânsito com o entorno e o imaginado. Não se trata,
portanto, apenas do local do acontecimento. A instância daquilo que ainda não
foi nomeado é impermanente porque está em processo de organização e
desorganização, evitando restringir-se exclusivamente à instância do hábito, do
padrão e do comportamento. É da natureza das experiências que marcam a história
da dança, desde os anos 1960 e 1970, desafiar os padrões mentais e motores.
Há alguns anos, o coreógrafo William Forsythe (apud
Brandstetter, 2000:16) tem afirmado que na dança o corpo apresenta-se
principalmente na sua forma temporal. Este seu aspecto de temporalidade está relacionado,
principalmente, à percepção do corpo. O que se identifica como uma ocorrência
ou a energia performativa do corpo que se move, no momento em que se move, é
aquilo que foge das tentativas de tradução e nomeação porque trafega entre o
que tem alguma estabilidade (a memória e os hábitos do corpo) e as perdas
concomitantes que caracterizam o estar vivo (o esquecimento, a entropia, o
envelhecimento).
Neste sentido, a dança sempre trabalhou com um tipo
de permanência que não é fixa porque se organiza em níveis diferentes. Esta não
é uma invenção da dança contemporânea, trata-se da própria natureza do corpo.
Muitas vezes, a dança é aparentemente estática num nível macroscópico, mas
intensamente trabalhada através de movimentos microscópicos, criando uma
espécie de impermanência invisível que resiste e transforma os estados
corporais em potência.
As paisagens do risco estão presentes nestas
experiências em diferentes sentidos. Correspondem a uma crise de categorias e
ao reconhecimento de que o que leva um sistema a mudar é precisamente o que ele
exclui. Daí a frase: isso não é dança. É sempre mais conveniente eliminar
aquilo que não cabe nos modelos dados do que repensar o que se considerava como
uma matriz de pensamento.
Não há verdade definitiva sobre o que acontece nem
no objeto em si, na sua imediaticidade, nem na reflexão sobre o objeto. Não existe
ação corporal sem crise, conflito, tensão, incompletude, trânsito com o ambiente
e perda. Algumas danças, identificadas como antidanças, nada mais fazem do que
questionar convenções, molduras e modos de agir, carregando as suas manifestações
para extremos, nem que seja apenas por divertimento, uma vez que não apenas a
dor, mas o humor também pode ser transformador através de um riso que desestabiliza
a cena, transformando-se em um jogo de vertigem, por exemplo.
As aproximações com o que se chama de performance
são, nestes casos, inevitáveis. De 1970 até hoje, muitas pesquisas e especulações
discutiram a performance como campo dos impasses, quando uma linguagem navega
através de outra e as referências se embaralham. A etimologia da palavra
performance, do francês “parfournir”,
já foi usada em diferentes sentidos como prover, completar, deslocar e está
relacionada à construção de alguma coisa que não é essência, nem verdade, mas o
traço de conexões que podem emergir como potência de vida e de ação. Trata-se
de algo que aconteceu uma primeira vez e que, na forma de performance, acontece
sempre, pelo menos pela segunda vez como uma repetição que restaura uma
situação que já passou, mas precisa ser reapresentada para radicalizar, distender,
transformar ou dar visibilidade ao que não foi destacado na primeira vez.
Aqui, é preciso observar que a noção de
“restauração” não significa reconstituir ou preservar. É mais no sentido de
re-instaurar para que a experiência não desapareça sem reflexão, sem deixar
marcada a evidência do acontecimento, mesmo que de uma maneira fragmentada, mas
de modo a preservar a sua mobilidade e marcando a diferença. O que se tem
questionado no campo da dança é se, desta forma, a experiência pode constituir
novos gestos do pensamento ou ações políticas desestabilizadoras.
O gesto, diz Giorgio Agamben (2000), é justamente a
exibição destas mediações, ou seja, dos processos de tornar um sentido visível como
tal. O gesto permite a emergência do corpo como mídia porque é a comunicação de
uma comunicabilidade. Não é um significado pronto, ao contrário do que se diz
em tantas publicações, mas trata-se de algo que está se constituindo. Muitas
vezes, o gesto é em si mesmo uma perda de memória, o que supostamente alguém poderia
entender como um “defeito” do discurso, mas é justamente aí, nestes
entre-lugares que o corpo se faz presente, constrói política e cria
conhecimento. Há uma diferença, explica Agamben, entre o esquecimento que
anestesia e aquele que reorganiza e desconstrói para construir.
A política na esfera do sentido sempre diz respeito
à gestualidade, à comunicação de uma comunicabilidade em um ambiente. De fato,
foi exatamente isso que aconteceu no Brasil, sobretudo a partir de 1970,
período em que o país vivia sob regime militar e forte censura. Formular
pensamentos em gestos de dança foi, na ocasião, uma estratégia velada, menos
explícita aos censores do que os textos escritos. Além disso, não se tratava,
necessariamente, de uma atuação para o outro, mas sim para o próprio sujeito em
situação de alteridade. Isso porque, quando este se repensa, desconfia de si
mesmo, das suas próprias
verdades. Parece que foi do gesto assim descrito, como sugere Agamben, que se alimentaram as primeiras
experiências brasileiras das anti-danças ou danças-performances. Nunca foi da
natureza da dança apresentar movimentos significativos, com um léxico claro, traduzível.
No entanto, a noção de passo de dança, muitas vezes com nomeações próprias,
forjou durante quatro séculos interpretações de metáforas corporais que
ganharam ares de universalidade. Não sem motivos, o bale clássico foi
considerado por tantos artistas e pesquisadores uma espécie de “língua
universal”. A interpretação das chamadas metáforas ontológicas que reincidem de
maneira semelhante em diferentes culturas (Lakoff e Johnson 1988, 1999) criou a
falsa impressão da possibilidade de tradução da dança em um discurso verbal supostamente
esclarecedor, como se a dança fosse uma ilustração ou a legenda de algo que não
nasce como movimento, mas sim como o seu significado.
O que têm mostrado os estudos do corpo nos últimos
trinta anos é exatamente o oposto disso. O conhecimento nasce do movimento e é
situado, singular. Migra de oscilação neuronal para acionamento motor e
vice-versa. É para compreender essas migrações dentro e fora do corpo que se
torna fundamental reconhecer diferentes níveis de complexidade que conectam
imagens, pensamentos e linguagem, constituindo os procedimentos da chamada
dança contemporânea.
As mudanças epistemológicas do corpo no Brasil
No
Brasil, de uma maneira geral, até 1970, falar em dramaturgia significava criar
e discutir exclusivamente textos teatrais, um tema que parecia não ter nada a
ver com a dança, uma vez que até então as experiências de dança no país
voltavam-se, sobretudo, para o balé e a dança moderna. Em uma época de
silêncio, censura e morte (o regime militar no Brasil vai de 1964 a 1985) é que
o movimento começa a se afirmar como fundamento da comunicação.
É possível observar três mudanças marcantes para o
início da pesquisa e criação de uma dramaturgia da dança que se identificará, duas
décadas depois, com o que se considera hoje como dança contemporânea no país.
Nos anos 1970, destacam-se duas questões. A
primeira está relacionada à valorização do aspecto comunicativo do gesto e à
tentativa de personalizá-lo. Um exemplo marcante foi o do Ballet Stagium. A companhia,
criada por Marika Gidali e Décio Otero em 1971, foi fundamental nesse período.
Apesar de usar fundamentalmente o balé moderno em suas coreografias, absorveu
movimentos e imagens da cultura brasileira em sua obra como o universo temporal
dos índios em Quarup (1977) ou uma estética estilizada do samba em Coisas
do Brasil (1979), levando os espetáculos para turnês que atravessaram o país
literalmente de norte a sul e que foram responsáveis em grande medida pela
criação de um público para a dança.
A segunda questão aparece relacionada às mudanças
de entendimento do corpo a partir dos cruzamentos entre os seus diferentes níveis
de descrição e experimentação que reconheciam, por exemplo:
1. Um
“dentro” do corpo que era singular, mas não essencial, uma vez que tinha
plasticidade, estava sempre em transformação.
2. Um movimento
anterior aos passos de dança visivelmente reconhecíveis, que equivaleria ao que
Hubert Godard reconhece como um pré-movimento – ação que se desenha internamente
antes de se tornar visível e reconhecível como um gesto.
3. E níveis distintos
de consciência corporal.
Alguns dos criadores que mais colaboraram com esta
discussão do corpo pensante e da percepção como ignição para o conhecimento foram
Klauss Vianna, Angel Vianna e Takao Kusuno, este último, especialmente a partir
do trabalho que desenvolveu com Denilto Gomes.
Na passagem de 1980 para a década de 1990,
destaca-se a articulação político-filosófica proposta por criadores
independentes que não faziam parte de companhias oficiais e pleiteavam novos
espaços de invenção e procedimentos de criação. A organização do Movimento Teatro
Dança e da Cooperativa de Bailarinos Coreógrafos são exemplares. Se a dança que
deixa traços de uma ação política em seu ambiente é performance, então já fazíamos
isso há mais de trinta anos, mesmo sem apostar em uma distinção de gêneros
artísticos.
É importante mencionar que é também nos anos 1990
que amadurecem as alianças entre teoria e prática através de investigações realizadas
por artistas e pesquisadores teóricos através da construção de um pensamento
crítico que passa a atravessar outros campos de conhecimento para pensar e
fazer dança. Proliferam grupos de estudo, faculdades, festivais profissionais e
despontam as primeiras publicações de autores brasileiros, resultantes da
realização de dissertações de mestrado e teses de doutorado.
Na passagem do milênio, estas iniciativas deflagram
a implementação de novos eventos como o circuito de festivais que promovem o
intercâmbio entre artistas brasileiros e estrangeiros através de quatro
capitais brasileiras, duas no nordeste (Recife e Fortaleza) e duas no sudeste
(Rio de Janeiro e Belo Horizonte).
Tais experiências mostram que os novos nexos de
sentido que caracterizam a construção das novas dramaturgias da dança não
acontecem exclusivamente no corpo, mas na conexão com ambientes específicos. O
Brasil são muitos Brasis. A dança brasileira são muitas danças. Alguns dos mais
importantes nexos de sentido podem ser reconhecidos na cena, no momento em que
ela acontece, e nos traços de performatividade que são evidenciados de maneira
cada vez mais incisiva, de modo a transformar os contextos por onde trafegam.
Eles podem ser identificados, por exemplo, na formação de um público mais
disponibilizado a experiências inovadoras, nas disseminações dos pensamentos de
dança, na formação de coletivos e na construção de uma memória cultural, até
então bastante precária e fragmentada.
Se o francês, especialista em Brecht, Bernard Dort
está correto ao afirmar que “a dramaturgia é uma consciência e uma prática”,
ela não é algo exterior ao processo, mas está no continuum corpo/cérebro/ambiente.
A dança no Brasil tem apresentado suas paisagens do risco na medida em que
explicita este processo, o que, evolutivamente, tem tornado a dança e a
performance cada vez mais próximas.
Bibliografia
Agamben Giorgio Notes on Politics. Theory out of
BoundsSeries, vol. 20. University of Minnesota Press, 2000.
Brandstetter Gabriele and Hortensia Völkers Re
Membering the Body. Hatje Cantz Publishers. 2001.
Clark, A. Being There, putting Brain, Body and
World together again MIT Press, 1997.
Dort Bernard Le spectateur en dialogue: Jeu du
theatre. POL, 1995.
Foster, Susan Leigh Choreography & Narrative:
Ballet’s Staging of Story and Desire. Indiana University Press, 1998.
Greiner
Christine O Corpo, pistas para estudos indisciplinares. Annablume, 2005.
Jones, Amelia e Tracy Warr. The Artist’s Body. Londres:
Phaidon.2000.
Lakoff George and Mark Johnson Metaphors we live
by.University of Chicago Press, 1988.
Lakoff George and Mark Johnson Philosophy in the
Flesh. Bradford Books, 1999.
Loupee,
Laurence Poétique de la danse contemporaine. Contredanse, 1997.
Rouch, Jean et
alii Corps Provisoire. Ed. Armand Colin, 1992.
Acesso em: 13/07/2014